29 de julho de 2010

BOOM!*

Ela ficou o dia todo de um canto a outro, era como se não achasse lugar em lugar nenhum. Dona Glória fazia o jantar enquanto seu Rogério assistia ao jornal. Tudo normal, até demais!

- Pai, uma pessoa pode explodir?
- Eu tô ocupado agora minha filha!
- Não tá não pai. Uma pessoa explode?
- Marina, você, por acaso, é um homem-bomba?
- Claro que não!
- Então, me deixa ver o jornal e vá ajudar a sua mãe!

Tudo estava muito pior. A conversa com o pai deixou-a ainda mais cheia, parecia que já não cabia mesmo em lugar nenhum.

- Mãe!
- Nós já vamos comer. Vá lavar as mãos e chamar o seu avô!
- Mas eu não conseguirei comer nada.
- Quantas vezes eu já te falei para não deixar a Marina comer fora de hora, hein Rogério?
- Agora vai fazer o que te pedi, anda menina!

Marina saiu da cozinha com a certeza de que a qualquer momento estaria espalhada pela casa, em pedacinhos.  - Aí, quem sabe, me notariam e ficariam pensando “Por que nós não lhe demos atenção?”.  É o mínimo que pessoa merece antes de sua explosão fatal, não é?

- Vovô, a comida já tá pronta. Mas eu não posso comer.
- Por quê?
- Porque eu to cheia. Eu to cheia feito lua.
- Eu sei bem como é isso. Mas saiba, eu tava aqui me lembrando de sua avó. Nós nos amávamos muito, minha querida.
- Você sente muita saudade, não é verdade?
- Ah, sim! Eu também passei muito tempo como lua cheia de tudo o que sentia pela minha Heloísa. Mas, pra minha sorte, um dia ela olhou para o céu. Se isso não tivesse acontecido nem sei o que teria sido de mim.
- Humffy, talvez você explodisse vovô!
- O medo e a incerteza fazem parte da vida, minha menina. Todos vão dormir sem saber se hoje será o ontem de amanhã. E lembre-se sempre que na vida há coisas que precisamos dizer, algumas apenas escrever e outras que precisamos contar pra alguém. Esse seu velho avô estará aqui pelo tempo que puder.

Naquela mesma noite, num pedaço de papel sobre a mesa do quarto:

Amanhã o Lucas vai saber que gosto dele. Quando a gente se casar eu também vou ficar ocupada vendo o jornal.

ps: perguntar se o Lucas sabe cozinhar e dizer que é bom que ele aprenda!




*Texto publicado no blogue Linhas Livres no dia 11/01/2010 

Zé*

Eu tenho me sentido muito sozinho e hoje parece que está pior. A saudade acordou comigo e comecei a me lembrar do passado. Eu queria, de verdade, alguém pra conversar, não tem! Abri uma gaveta e encontrei algumas fotos antigas, papel e caneta. Resolvi escrever, mas não sei direito como e nem o quê. Então vou contar para essa folha de papel algumas coisas sobre mim.
 
Prazer, eu sou José Ninguém de Coisa Alguma Filho. Nasci e fui criado em Nossa Senhora dos Boatos Sem Fim, cidadezinha que fica perdida no interior do Brasil. É tão longe e tão perdida que nem as pessoas de lá sabem muito bem onde fica. Meu pai, Seu Zé Alfaiate, como era conhecido, era órfão de pai e de mãe. Aprendeu o ofício do corte e da costura no abrigo onde foi deixado na porta ainda bebê, lá foi criado e cresceu. Lá as crianças costuravam as próprias roupas. Ele fazia os ternos mais elegantes da região. Mamãe era doceira das boas. Todos conheciam Dona Berenice, mas podia chamar de Berê dos doces que ela atendia. 
 
Quando menino era muito levado e não parava quieto. Corria pelas ruas de terra batida da cidade todinha, soltando pandorga e jogando bolitas. Na escola era a mesma coisa. A mãe teve que largar o tacho muitas vezes, por causa do chamado da professora. Em dias assim papai me esperava no portão com aquela cara aborrecida e decepcionada. Era pior que qualquer surra e me fazia sentir a pior das vergonhas. O pai era homem rígido, devia ser pela disciplina no orfanato, e de pouco estudo. Dizia que a educação e o estudo, dos poucos que tinham pra me deixar, eram os bens mais importantes. Estudei muito e me formei Engenheiro Civil. Mas ele também me falava que só estudar não bastava, eu tinha que usar o que aprendesse pra melhorar a minha vida e a dos outros. Achava que uma pessoa era lembrada mais pelas suas ações do que pelo seu diploma.
 
O povo boatense levava a risca o nome da cidade. O caso por lá era tão sério que as pessoas das outras cidades faziam anedota perguntando: “Quem nasce em Nossa Senhora dos Boatos Sem Fim o que é”? Fofoqueiro, respondiam. Eu não sei explicar porque colocaram esse nome. É uma dessas idéias brilhantes, saída de uma cabeça de igual brilhantismo. Vê lá se tem Santa pro disse me disse de gente desocupada. Na cidade moravam as três maiores futriqueiras do mundo, as irmãs Norma, Thereza e Valdete. Solteironas que diziam que todas as mulheres do lugar eram marafonas. As casadas eram as piores, pois enganavam os maridos.
 
Das maiores vítimas das linguarudas eu me lembro de uma. Seu nome era Maria de Lourdes, apelidada desde menina de Malú. Ela era casada com Paulo Renato, o chefe da Guarda Municipal. Sujeito mal encarado que se orgulhava de ser autoridade. Punia os ladrões de galinhas, o maior crime que ocorria por ali, com muita pancada. Fazia o mesmo com a mulher depois que tomava uns goles a mais. Malú se cansou dessa vida e fugiu. Nessa mesma época o dono da barbearia, Afonso, também foi embora. As irmãs ligaram os fatos e começaram a destilar seu veneno. Elas chamavam a coitada da moça de Malú, a Meretriz. Eu nunca soube se os dois fugiram mesmo juntos, mas, se foi esse o caso, fizeram muito bem. Eram pessoas boas, mereciam encontrar o amor. Em Nossa Senhora tudo era baseado em boatos, naquilo que se ouviu falar. A verdade era o que menos importava.
 
Eu passei alguns anos fora, fui fazer faculdade no Rio de Janeiro. Foi lá que conheci o amor da minha vida, Margarida dos Santos. Era a professora de colegial mais bonita que já tinha visto. A gente se casou assim que me formei. No dia do casamento o Padre não queria terminar a cerimônia porque o nome de casada da noiva era quase uma heresia, dizia ele. “Como alguém pode se chamar Margarida dos Santos de Coisa Alguma? Todo Santo tem que ter causa e tem que ser Justa!”. Foram 61 anos de união e dois filhos, a mais velha Marietha Helena e Dagoberto Augusto. Durante o curso entrei pra política e me filiei a um partido. Depois do enlace voltei pra minha terra, obedecendo ao meu pai que disse que devia estudar e ajudar a mim e aos outros com o que aprendi. Fui candidato a prefeito e ganhei as eleições porque espalharam pela cidade que eu tinha inventado o tal de bondinho que atravessava de um morro pro outro pendurado numa linha. O bonde foi inaugurado quase dez anos antes de eu nascer, mas o povo não sabia disso. As notícias, aquelas importantes, chegavam um pouco tarde por lá. Na minha gestão fiz o melhor que pude, principalmente, pela educação das crianças, saúde, saneamento básico, enfim… O atual prefeito foi muito bem votado porque se ouviu falar que ele tinha sido artista de cinema. Infelizmente, eu não sei se ele é um bom governante porque quando fiquei viúvo me mudei pra São Paulo. Vim ficar perto da minha menina que é médica. Aqui ela cuida melhor de mim. O guri é biólogo na Amazônia.
 
Bom, acho que fiz um bom resumo da minha história. É cheia de personagens curiosos com seus nomes compridos e engraçados, uma infância feliz, algumas aventuras e um amor verdadeiro. Eu espero ter escrito um bom texto, ouvi dizer que as pessoas sempre lêem boas histórias, mesmo que o autor seja um Zé Ninguém.


* Publicado no blogue Linhas Livres em 06/03/2009

Amanheceu

Horácio definitivamente não é o mesmo de antes. Tornou-se alguém mais forte, com certeza. Os olhos dele são menos míope, já conseguem enxergar uma porção maior do mundo. Na tentativa de aprender da vida, acabou sabendo mais dele mesmo.  Descobriu todas as suas capacidades e os seus contrários.
Achava que para falar sobre a tristeza, era preciso estar feliz porque assim ele estaria no controle. Não deixaria a tristeza ter voz e vez para dizer o que quisesse sobre si mesma. O mesmo para falar de felicidade. Mas descobriu que para dizer qualquer coisa sobre sentimentos, é preciso sentir. Sentir tanto e mais. Caso contrário, não dá pra falar. Só fingir.
O talento patológico de nunca conseguir dizer o que as pessoas querem ouvir, ele ainda carrega. Sempre diz o que acha certo dizer, mas, na maioria das vezes, diz daquele jeito sem jeito quase que se desmentindo. Principalmente se for pra alguém que ele gosta d’um tanto muito grande.
Veio ao mundo para ser o segundo filho, com a posse vitalícia do cargo de ser o terceiro neto, Horácio. Nome daqueles que carrega o peso de uns cem anos de idade. Nome próprio, mais do que apropriado, porque já guardava – desde o primeiro momento de vida – uma velhice muito maior que a dos cabelos brancos do avô. O sol nasceu pra ele. Apaixonou-se irremediavelmente pela lua.